domingo, 21 de setembro de 2014

Para Ler & Refletir...

Meu cu para os seus bons costumes: sobre respeitabilidade e promiscuidade



Fábio Fernandes


A cena é poética: uma piscina de uso comum, na Europa, pessoas de diversas idades, gêneros, cores, e até mesmo nacionalidades. Uma diversidade de corpos quase incomunicáveis. Um marasmo satisfatório, daqueles refletidos em almejadas zonas de conforto e serenidade como projetos de vida. A doce apatia é quebrada pela chegada de um ser de olhar ambíguo, que, entre uma cena e outra, transita entre os gêneros e provoca um dilaceramento nas proibições, nas normas. Como um “vírus” incontrolável de desejo ampliado à milésima potência, tod@s começam a se pegar indiscriminadamente, e a água daquela piscina se torna o espaço para que corpos transbordem prazeres intensos, gozos antes proibidos. Esse é basicamente o roteiro de Cold Starcurta-metragem que me inspirou a escrever esta inquietação. E, não, isto não é um texto, é um grito ouvido por poucos, pois a sensação é de que há um movimento para o meu silêncio.

Para a Organização Mundial de Saúde, é suficiente que você tenha ultrapassado o número de três parceiros sexuais por ano para ser considerado “promíscuo”. Bom, quanto a mim, não contarei, e quer saber por quê? 1) eu me perderia entre os dias, semanas e meses que já correram neste ano; 2) lançaria sobre o meu corpo o escrutínio dos dispositivos de regulação estatístico e estatal – o controle biopolítico levado a cabo pelo Estado exerce um poder imenso sobre o que podem os corpos, quais os seus limites, prescrevendo manuais de bom senso, moralidade e salubridade que pretendem guiar o seu uso.
A saúde pública tem sido usada como estratégia/arma para limitar o quê, como, com quantos, e de que forma você usa aquilo que seria por direito seu: “seu” corpo. Obviamente, a categoria da promiscuidade atende a essa legislação sobre o seu, o meu, o corpo d@ outr@ de forma assimétrica: há, nessa intricada fórmula, elementos essenciais para que a polícia do sexo aja eficientemente em suas políticas de controle. Para cada categoria identitária, se você é lido socialmente como homem, mulher, trans, cis, negro, negra, gay, hétero, jovem, idos@ etc. etc., haverá um manual de controle específico.
Práticas sexuais dissidentes tornarão você um “anormal”. Sadomasoquismo, fisting,rosebudscat, “chuva dourada”, ménages, surubas, duplas, triplas penetrações, inúmer@s parceir@s por semana, sexo sem camisinha e muitas outras possibilidades destoantes do sexo “limpo, seguro e saudável” serão rechaçadas, e pode se preparar para a regulação: a vigilância e a punição por tais escolhas “ousadas” certamente virá. Obviamente, a ideia de “escolha”, ouso afirmar, será substituída pela noção de pecado, perversão e/ou doença. Ciência e moralidade parecem muitas vezes se retroalimentar, fortalecer uma à outra.
Estava pensando em como, por exemplo, as boates gueis têm fechado sistematicamente seus quartos escuros (dark rooms), e pondo seguranças nos banheiros para impedir a pegação, e de como as saunas têm se tornado lugares enfadonhos e “respeitáveis” (com suas devidas exceções, certamente). A emergência de uma cultura guei viabilizada pelo capital, há algumas décadas, transformou esses lugares em vitrines de corpos blasés e points de bichas finas e tediosas, como já refletido por Carlos Henrique em texto anterior aqui no blogue. Em reação a esses grandes “shoppings centers” assépticos de sexo que se tornaram os lugares de pegação, emergem os pequenos clubes dos centrões das cidades, como os de Salvador: cabines de sexo em que são cobrados valores irrisórios, ambientes simples, mais baratos, e que atraem um público mais “solto” em relação às grandes saunas. A pegação rola, segundo minha vivência, com muito mais intensidade nesses lugares. Outros locais públicos como praias, banheiros e escadas de emergência dos shoppings centers também são rasurados por corpos sedentos de desejo e vontade de se encontrar.
Da revolução sexual dos anos 60/70 à crise da AIDS nos anos 80, os grupos sexuais e de gênero dissidentes são os que sofrem com muito mais impacto os efeitos do controle estatal biopolítico sobre os corpos. Repatologizados, atacados, cerceados pelo Estado e por instituições como a escola, a medicina, as religiões, gays, lésbicas, transexuais, mulheres, usuários de drogas, putas e outras vivências alternativas às normas travam hoje batalhas para (r)ex(s)istir. O cruel assassinato do jovem gay João Donati, recentemente, despertou inúmeras reações, inclusive de gays, apontando como ele foi culpado pela própria morte, ao assumir os riscos de viver uma “vida promíscua”. Fiquei estarrecido, pois, mesmo em um momento tão triste como esse, no qual muitas pessoas se mostraram abaladas diante da violência do crime, uma vida ceifada brutalmente!, alguns/algumas são capazes da atrocidade de culpabilizar a vítima, uma vítima de crime de ódio, de homofobia.
E não venha usar o argumento da “prosmiscuidade”, pois o corpo é meu, eu dou a quem quiser, a quantos quiser e tenho o direito a minha integridade física. Essa postura é fascista, desumana e me provoca asco. As pessoas que vociferam tais discursos são tão culpadas quanto o(s) assassino(s) do rapaz, pois contribuem diretamente com os crimes de ódio tão frequentes.

Deixo aqui meu recadinho para alguns setores dos movimentos LGBT e feministas que assimilaram “estrategicamente” as leis da heteronormatividade como manobra para a conquista de direitos e mudanças sociais, em um movimento de defesa de certos modelos de vida como ideais: há quem queira casar, aderir a modelos monogâmicos de relação e construir suas relações a partir dessas escolhas e há quem queira comer e dar para todo mundo, experimentar outras possibilidade de gênero, e isso não significa um erro, um problema, um surto, uma patologia. Ambas as escolhas precisam ser respeitadas. Que tal pensarmos nos usos mais diversos do corpo como políticas de vida (e ressignificação da existência)? Repensarmos o moralismo que estigmatiza as e os trabalhador@s sexuais, por exemplo?
Eu às vezes sinto que a força centrípeta que incide para impedir minhas experiências descontínuas e intensas é imensa e isso às vezes me cambaleia, porém minha pulsão de desejo, aqui pensado como um manifesto de vida, resiste e continua. E pulsa. Pulsa. Pulsa. Derrama. Se espalha. Como a estrela que se acende nos momentos mais imprevisíveis, em desejos mais improváveis, nas pessoas mais incertas, em águas frias de piscinas que se revolvem como oceanos devoradores.

Fonte: http://www.ibahia.com/a/blogs/sexualidade/2014/09/18/meu-cu-para-os-seus-bons-costumes-sobre-respeitabilidade-e-promiscuidade/

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